Comportamento animal

Cães guias são os olhos de pessoas com deficiência e criam relação de cumplicidade com tutores

Publicado - 30 Março 2023 - 12h01

Atualizado - 11 Abril 2024 - 14h35

O cão guia pode mudar a vida de uma pessoa com deficiência visual. A função desses animais de serviço é orientar a pessoa cega no dia a dia nas mais diversas tarefas, como atravessar a rua, desviar de qualquer tipo de obstáculo ou subir e descer escadas. O cão guia traz uma sensação de conforto, segurança e independência à pessoa cega. Mas não pense que essa é apenas uma relação de “trabalho”, como alguns podem pensar. O laço que une o cão guia e seu tutor é muito mais profundo. Com o tempo, a amizade e o companheirismo entre os dois passam a ser extremamente fortes.

Você já deve ter reparado que há uma sintonia muito intensa entre o cachorro guiando e a pessoa com deficiência visual. O processo até a adaptação total, no entanto, é muito cuidadoso, desde a escolha do pet aos meses de treinamento intenso. Definitivamente é uma relação de cumplicidade que se constrói aos poucos!

Como uma pessoa com deficiência visual pode conseguir um cão guia? 

Muitas pessoas cegas sonham em ter um cão guia ao seu lado. Mas como é o processo para conseguir a licença? Para isso, é preciso seguir alguns pré-requisitos. Miguel Christino é o diretor presidente do Instituto Carioca de Cão Guia (@caoguiacarioca ), que funciona desde 2021 no Rio de Janeiro. Ele explicou como se dá o processo para obter a licença de cão guia. Primeiro, a pessoa deve ser maior de idade ou ter mais de 16 anos e ser emancipado. “Para andar com um cão guia, o indivíduo precisa saber primeiro andar com a bengala longa. Depois, tem que se inscrever no instituto. Nos sites, há uma parte de inscrição onde o indivíduo se inscreve, responde um questionário e é avaliado. Ele tem que ser legalmente classificado como uma pessoa com deficiência visual dentro dos padrões definidos no decreto 5904 de 2006”, esclarece Christino.

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Mellina precisou esperar alguns anos até conseguir a cão guia Hilary 

De acordo com o último levantamento do IBGE, em 2010, existem cerca de 6 milhões de pessoas com deficiência visual no Brasil. Apesar de não existirem dados oficiais, acredita-se que são cerca de 2.000 pessoas na lista de espera para a obtenção de um cão-guia. Porém, a estimativa é de que existam menos de 200 cães-guias em atividade. Mellina é turismóloga e influenciadora de viagem. Ela foi diagnosticada com uma doença progressiva na retina chamada distrofia de cones e bastonetes. Hoje, ela conta com a cão guia Hilary, da raça Labrador, ao seu lado. Mel explica, porém, que o caminho até conseguir a licença não foi tão rápido. 

Ela passou por dois processos seletivos, sendo o primeiro em 2012. “Na época, eu ainda não aceitava muito bem a minha deficiência e acabou não dando certo. Mas eu acho que nada é por acaso. Dois anos depois, no finalzinho de 2013, [o projeto SESI em parceria com o Instituto IRIS] entraram em contato comigo de novo falando de um outro projeto. Eles estavam entregando para funcionários da indústria. Eu estava me desligando da empresa que eu trabalhava para, em 2014, começar na indústria e aí deu super certo. Eles me ligaram falando que tinha a Hilary”, conta Mel. 

Entenda como é o treinamento do cão guia antes de conhecer o tutor 

1) Christino explica que tudo começa durante a escolha do filhote na ninhada. “Buscamos criadores com tradição em criar os cães, que tenham rastreabilidade dos cachorros, façam controle genético, análise de DNA, entre outras coisas, para que a gente evite cães que tenham problemas de ordem genética”, conta. Nada garante como será a personalidade do cachorro no futuro, mas a análise ajuda a ter uma noção melhor de como o pet se sairá. Todos os cães podem ser cães guias. Raças como Labrador (como a Hilary) e Pastor Alemão, porém, naturalmente têm a personalidade e o porte que são esperados para esse tipo de serviço.

2) Na segunda etapa do treinamento de cão-guia, o animal convive com famílias socializadoras. “São famílias que fazem o trabalho voluntário de socializar o cachorro até ele completar um ano e meio. Elas recebem dos institutos de treinamento ração, veterinário, banho e assessoria técnica para ter condição de educar o cão”, explica Christino. Os voluntários são responsáveis pela educação básica do animal. “O cachorro não pode subir nos móveis, na cama, no sofá ou nas cadeiras, não pode pular nas pessoas, pedir comida na mesa, comer coisas que estão no chão, fazer xixi e cocô em qualquer lugar de qualquer jeito… são regras de convívio social que o cão precisa aprender”, esclarece Christino. 

3) Depois da socialização, o cão volta ao instituto e é treinado por cerca de seis meses com técnicas de guiar utilizando o arreio (peça que tem a alça que a pessoa cega deve segurar). “Ele vai aprender a procurar a faixa de pedestre para poder atravessar, parar no meio-fio, dobrar esquerda e direita, subir a escada rolante, subir e descer escada, procurar o elevador, procurar farmácia, procurar banheiro… Isso é feito na cidade, onde o cão-guia vai executar essas atividades”, explica Christino.

 

Mel e sua cão-guia Hilary já viajaram juntas para várias partes do mundoHilary é a cão guia da turismóloga e influenciadora de viagens MelMel e sua cão guia Hilary possuem uma intimidade muito profundaA cão guia Hilary ajuda Mel a se orientar na rua e em qualquer outro lugar

 

O início de uma linda relação entre cão guia e pessoa com deficiência visual começa no treinamento

 

Quando o cão guia já passou pelo treinamento sozinho, é hora de conhecer o seu tutor e começar a viver junto dele para ver como será essa relação. “Na verdade, é mais um treinamento para a pessoa do que para o animal. É para ela aprender a trabalhar com o cachorro e as questões de cuidado, comandos e tudo mais”, conta Christino. Durante essa etapa, Mellina e os outros participantes do treinamento foram levados até um hotel em São Paulo para conhecer seus cães guia. “A gente ficou no quarto, na expectativa, esperando a entrada deles. Aí a Hilary entrou no meu quarto igual um foguete. O instrutor que estava ali com ela me entregou. Eu pensei ‘meu Deus, o que eu faço?’. Estava feliz, tensa e com vários sentimentos envolvidos”, conta Mel. O primeiro contato pode ser confuso, mas é para isso que serve o treinamento. A dupla vai passar o dia inteiro junta aprendendo a andar e conviver um com o outro.

Nem sempre a relação entre cão guia e tutor começa bem logo de cara

Muita gente acredita que a relação entre cão guia e pessoa com deficiência visual é como amor à primeira vista e tudo é bom desde o início. Porém, nem sempre o match entre os dois é instantâneo - e não há problema nenhum nisso. Mel e Hilary hoje tem uma intimidade linda e profunda, mas ela conta que o início não foi tudo às mil maravilhas. “A Hilary era muito arredia e desconfiada. Eu ia fazer carinho nela e ela virava, me ignorava. Eu chorava muito achando que ela nunca ia gostar de mim e não sabia muito como agir também”, explica a turismóloga. “Ela andava muito rápido e eu ainda estava receosa e insegura para confiar nela. Eu ficava com meu braço doendo pra caramba, mas aos poucos a gente foi se ajustando”, conta.

Mel afirma que tudo foi um processo de conquista. Apesar das dificuldades iniciais, Hilary estava sempre ali ao seu lado e cuidando dela. Por isso, se você está (ou conhece alguém que está) passando pelo treinamento com cão guia e tem medo de estar tudo dando errado, não se preocupe porque as dificuldades no início são suer normais. Com paciência e cuidado, cachorro e tutor passam a criar um laço único e profundo, assim como aconteceu com Mel e Hilary.

Hoje, Mel e Hillary possuem uma grande sintonia entre si 

Apesar das dificuldades iniciais, Mel e Hilary possuem uma intimidade única e indescritível. “Hoje, ao contrário do início, [nossa relação] é de muito amor. Ela é super apegada, está o tempo todo ali sempre próxima a mim e me observando”, explica. Mel conta que se sente mais à vontade com Hilary guiando do que com outros indivíduos. “Dificilmente ela me faz trombar ou esbarrar em alguma coisa. Muitas vezes, outras pessoas que estão me guiando esquecem de me avisar de um obstáculo e eu acabo tropeçando ou esbarrando. Isso ocorre com frequência, coisa que não acontece com a Hilary”, esclarece.

A relação de cumplicidade entre cão guia e tutora é tão intensa que uma consegue até adivinhar o que a outra está pensando. “Vamos supor que eu estou indo para o metrô e penso ‘acho que vou parar na farmácia’. Eu não dou comando nenhum para a Hilary, só estou pensando. Então penso ‘ah não, vou direto para o metrô’. E aí, do nada, sem eu nem dar o comando para ela, a Hilary vai e entra na farmácia. Isso já aconteceu algumas vezes, a gente tem uma sintonia muito grande”, conta Mel.

A junção de um cão guia com uma pessoa com deficiência visual é como um casamento

O cão guia e o seu tutor precisam “dar match”! A dupla deve combinar para que a relação funcione da melhor forma possível. Por isso, o processo não é tão simples como parece. “É preciso adequar a pessoa com deficiência visual ao cão em relação a fatores como a altura dos dois, a velocidade de caminhar da pessoa e do animal, a quantidade que a pessoa anda por dia e o desejo/necessidade desse cachorro de andar diariamente e assim por diante”, explica Christino. 

O cão guia e o cego vão viver por muitos anos juntos realizando todas as atividades em parceria. Para que tudo aconteça da forma mais confortável para os dois, essa atenção na hora da escolha é essencial. É por isso que Mel afirma que a relação entre cão guia e pessoa com deficiência visual é como se fosse um casamento: “Eles têm que conhecer o perfil do usuário para saber se o perfil do cão bate com o dele”, conta.

 

A cão guia Hilary está ao lado de Mel desde 2014Mel e Hilary se divertem juntas durante as viagens que fazem pelo mundoA cumplicidade entre a cão guia Hilary e sua tutora Mel é emocionante

 

Uso de cães guias: entenda o debate sobre o uso de cachorros para trabalho

 

Existe um debate sobre a utilização ou não de cães para trabalho, no geral. Algumas pessoas defendem que cães não deveriam assumir um papel tão sério, seja como cachorro policial, bombeiro ou até mesmo como cão guia. A discussão vai além dos cães e também leva em consideração outros animais, como os cavalos que, muitas vezes, também são utilizados pela polícia. A questão levantada é que já existem tecnologias que poderiam ser utilizadas em vez de um animal. Então por que colocar o bicho para atuar em favor do homem ao seu lado com profissões humanizadas? Eles devem mesmo trabalhar ao invés de viverem sua vida simplesmente como animais? Essas pautas têm causado um grande debate sobre os cães no trabalho. Vale ressaltar que os institutos de treinamento devem sempre prezar pelo bem estar e segurança dos animais em primeiro lugar. Tomando todos os cuidados, os cães têm uma vida de conforto e qualidade. 

Cães-guia também devem se aposentar depois de alguns anos 

Assim como os humanos, cão guia se aposenta por volta dos 10 anos de idade. Nessa fase da vida, os cães já estão idosos e precisam descansar. Christino explica que existem quatro possibilidades de “aposentadoria” para os cães. “A primeira é o próprio tutor ficar com o cão, mas ele tem que querer e poder porque, normalmente, quando o cão é aposentado, o cego vai querer um outro cão guia. Como manter os cães têm um custo, tem que haver condição financeira de ter os dois cães”, esclarece. Além disso, ele explica que se a pessoa morar sozinha pode ser difícil cuidar do cão guia aposentado, já que ele não pode ficar tanto tempo sem companhia. 

Caso não consiga manter o cachorro, a segunda possibilidade é ver se alguém da sua família pode adotar. "A gente tenta a família da pessoa cega, porque é onde ela ainda vai ter contato com o cão e vai ser muito legal para os dois”. A terceira possibilidade é ver se algum amigo do antigo tutor pode adotar o cão guia aposentado, pois também fica mais fácil de os dois manterem contato. Se isso também não for possível, o instituto parte para a última possibilidade. “A gente pega o animal de volta e abre um edital para ver quem quer adotar esse cachorro aposentado, o que é uma coisa razoavelmente fácil de conseguir porque é um cão muito educado. Todo mundo quer um Labrador bonito, bacana e tão bem educado assim”, esclarece.

Hilary está em processo de aposentadoria atualmente 

Hoje, a cão-guia Hilary já tem 11 anos e está passando pelo processo de aposentadoria. Mel optou por continuar com a cadela e está tomando os cuidados para que ela se adapte à nova rotina de cão de companhia. “Ano passado já comecei a deixar ela mais em casa, a não sair com ela todas as vezes e selecionar bem quando levar ou não para ela já ir se acostumando com isso mesmo”, explica. Agora, a Hilary precisa aprender a viver sem a tutora ao seu lado o tempo inteiro. "É um processo não muito fácil emocionalmente para mim e para ela, mas faz parte”, conta Mel. 

Durante esse processo de aposentadoria, é comum que o cão apresente dificuldade em fazer atividades com outras pessoas que não sejam o seu tutor. “Às vezes, meu marido quer ir passear com ela para dar uma volta quando eu não estou em casa e ela não vai. Só vai comigo”, explica Mel. Sem dúvidas, é um momento complicado, mas a relação que Mel e Hilary construíram por tantos anos continua sempre de pura cumplicidade e amor.  

Mel e Hilary já viajaram juntas por todo o Brasil!

O cão-guia dá à pessoa com deficiência uma enorme sensação de liberdade e independência. Mel, que é turismóloga e adora viajar, já fez inúmeras viagens com Hilary para diversas partes do Brasil e do mundo. As aventuras estão registradas no seu perfil do Instagram @4pataspelomundooficial . “Viajar com a Hilary é maravilhoso! É uma autonomia que eu não tenho com a bengala. Como eu faço muita viagem sozinha, ela me dá muito mais segurança para fazer caminhadas, conhecer os lugares, não precisar de pessoas 100% do tempo…”, conta Mel. 

A presença de Hilary garante que Mel aprecie tudo durante a viagem com muito conforto, segurança e diversão, assim como qualquer um. A tutora conta que, juntas, elas caminham na praia, curtem a maresia e fazem companhia uma à outra. Afinal, a relação que elas têm não é apenas de cão-guia e tutora, mas de companheirismo, lealdade e amizade. "A Hilary me proporciona essa liberdade que é algo indescritível”, afirma. A história de Mel e Hilary é a prova de que a relação de confiança, cumplicidade e companheirismo entre cão-guia e tutor é muito mais profunda do que se imagina.

Redação: Maria Luísa Pimenta 

Edição: Luana Lopes

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